ATUALIZAÇÃO
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Foto do espelho d'água da FCLAR, postada na página da Paralisação no Facebook.
As diversas barracas que tomam a
área ao lado do prédio do Restaurante Universitário da Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara, um dos maiores e mais importantes campus da Unesp, se
tornaram protagonistas na semana passada de uma série de especulações tão
superficiais e mesquinhas por parte da imprensa que não apenas formaram um
juízo equivocado do movimento conduzido pelos estudantes mas em pouco ou nada
ajudaram no real problema que elas representam. Pelo contrário: as matérias enviesadas
e sensacionalistas apenas contribuem para fomentar o preconceito já tão grande
contra o estudante de baixa renda que faz parte do meio universitário - e
contra o movimento estudantil como um todo.
Famosa pelo seu histórico de
lutas por diversos direitos, a comunidade estudantil de Araraquara já ocupou o
Campus Universitário por outras vezes. A própria construção do complexo que
forma a Moradia Estudantil da FCLAr foi motivada por uma ocupação ocorrida nos
anos 80. A ocupação dessa vez, no entanto, tinha outro mote: a expulsão de
alunos da mesma Moradia em consequência de uma acusação de práticas que feriam
os regimentos internos da instituição. A mais chamativa - e a mais comentada -
seria uma orgia que, efetivamente, nenhum aluno, funcionário ou professor sabe
ao certo como aconteceu.
Uns argumentam que a punição foi
justa, por considerarem a Moradia como um ambiente público e tal ato ferir a
convivência no local, enquanto outros questionam a motivação pessoal da
acusação - feita por membros da própria Moradia que possuíam problemas pessoais
com os acusados -, bem como o suposto policiamento moral sobre o comportamento
sexual alheio; É fato que o acirramento das posturas em defesa do politicamente
correto e do incorreto - e da própria delimitação do que concerne a cada uma
dessas esferas - traz à tona um dado da nossa realidade que cada vez mais salta
aos olhos, a relação complicada da sociedade com os limites da sexualidade e do
corpo. Ademais de julgamentos que se possa fazer sobre a motivação da expulsão,
o que mais chama a atenção é a ação da diretoria da faculdade que, sem nenhum
tipo de questionamento ou ponderação, abriu sindicância contra os alunos
imediatamente. Em nenhum momento parece ter sido questionada a situação desses
alunos como pessoas carentes, que ao serem retirados da Moradia perderam também
a possibilidade de prosseguir com seus cursos de maneira plena. Além disso, há
de se reforçar o terrível sentimento de invasão de privacidade ao exporem de
maneira tão fria e inconsequente a intimidade desses alunos. Ao assumir a ação
do sexo grupal como um dos fatores principais que, aquém da questão econômica,
contribuíram para seus afastamentos, criou-se uma situação vexatória e
desnecessariamente ultrajante. Por conta de uma ação autoritária e desastrada,
alguns dos sindicados já desistiram de seus cursos por não ter como se
sustentarem sem o benefício da Moradia, além de ficarem estigmatizados como os
alunos participantes da “orgia”. Foi contra isso que se ergueram as barracas.
Então, na semana do dia 13 de
maio foi iniciado um movimento de paralisação na FCLAr. Essa paralisação
incluiu, entre as demandas do movimento estudantil, a questão da expulsão dos
alunos, por compreender que um dos temas da paralisação, a permanência
estudantil, era contemplada pelo movimento de ocupação. Mas apesar do mote
similar, em nenhum momento o movimento que paralisou as atividades da FCLAr de
14 a 17 de maio foi motivado por uma “defesa à orgia”, como insistiram não
apenas os detratores do movimento estudantil como diversos jornais, num claro
desserviço ao real intuito das manifestações. Grandes portais como Folha de São
Paulo (“Expulsão de alunos por orgia causa protestos na Unesp de
Araraquara”), Veja (“Unesp: após orgia em festa, estudantes interrompem
aulas”) e G1 (“Expulsão de 6 alunos após orgia gera manifestação na
Unesp Araraquara”) noticiaram que o protesto foi motivado pela
orgia, e que os estudantes que realizaram o bloqueio das salas de aulas com
cadeiras - medida extrema com a qual não concordo a priori, mas que não vou analisar profundamente pois não é motivo
do texto - tinham como objetivo norteador a sindicância aberta contra os
alunos.
Ao noticiar de maneira
completamente equivocada e sensacionalista a paralisação como consequência da
“orgia” na moradia, os veículos midiáticos apenas acirraram ânimos e
preconceitos contra os estudantes dentro e fora da universidade. A Assembleia
realizada em em 18 de maio com a participação de mais de 1000 alunos decidiu
por não realizar uma greve, mas quem esteve lá - como eu estive - viu que
muitos dentro da própria universidade não tinham claro o real motivo da
paralisação e da proposta de greve, e reincidiram nas acusações referentes à
orgia e ao comportamento dos estudantes da Moradia Estudantil, reproduzindo o
preconceito de classe evidente nos próprios discursos dos veículos midiáticos.
Mas, e acima de tudo, o movimento que se ergue nas várias unidades da Unesp tem por alvo primeiro o PIMESP - programa de inclusão do governo do Estado que possui ampla rejeição por parte da comunidade acadêmica. O Programa que visa “adequar” a exigência de um sistema de cotas ao modelo das grandes universidades do Estado de São Paulo, sob pretexto que o sistema de cotas diminuiria a excelência das universidades paulistas, é visto como uma medida paradoxalmente racista e excludente, que atinge diretamente a parcela mais pobre da população que almeja uma vaga nas grandes instituições de ensino do Estado. A medida afeta diretamente a permanência estudantil, uma das bandeiras do movimento. Ao asseverar em suas manchetes que a paralisação das atividades dos alunos tinha como bandeira a “orgia”, a mídia desviou o foco - talvez intencionalmente - dos problemas reais contra os quais lutam os estudantes.
Durante os dias de paralisação
aconteceram debates, atividades culturais, apresentações de palestras e vídeos
e outras atividades que a mídia não cobre e nem vai cobrir, provavelmente. O
ambiente de convivência pacífica e de reflexão implementado pelos alunos da
FCLAr por três dias seguidos não é assunto tão interessante quanto uma orgia,
pois na condenação moral dessa ação e no reducionismo que conduz a ela
encontramos os ingredientes para a desconstrução de todo o sentido inerente a
uma mobilização do tipo - e nossos caciques midiáticos morrem de medo de
qualquer mobilização. Eu me pergunto quando foi que a orgia deixou de ser uma
prática sagrada, um culto à fertilidade, como nos tempos da Grécia Antiga, para
se tornar o alvo da culpa e da repressão dos indivíduos. Quando deixamos de ver
a vida como uma festa e passamos a vê-la com tanta reprovação e culpa? Será que
realmente uma orgia é motivo para tanta celeuma - mais do que o direito de
morar e estudar em paz?
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